quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O meu dia daqui a dez anos

O despertador toca: são neste momento sete e vinte da manhã, dia 27 de Janeiro de 2020. Ergo-me na cama, esfrego os olhos e penso “Hora de trabalhar”. Aquilo que me salva é que o meu posto de trabalho não fica longe, uma vez que me encontro sentada nele. Exacto, o meu posto de trabalho é a minha cama. Há três dias que não saio dela, para quê?
Espreguiço-me enquanto o meu computador levita do seu sítio na prateleira para vir a meu encontro. Programei-o para aterrar na cama às 7:30. São neste momento 7:32. “Tenho de o mandar arranjar”, penso alto. Normalmente o meu computador nunca se atrasa, não foi programado para isso… Recosto-me na cama e abro a tampa do computador. Este exclama: “Bom dia!”, caindo de novo em silêncio. Dou um suspiro resignado, uma vez que estou farta de ouvir esta coisa a palrar todas as santas manhãs. Paro um momento para olhar em volta: o meu quarto está todo forrado com pequenas prateleiras, e dentro destas estão todos os meu pertences, desde a minha roupa, á minha escova de dentes, ao meu computador. É praticamente impossível ter a casa desarrumada, uma vez que todos estes objectos têm ligados a si um dispositivo de levitação que, assim que acabamos de trabalhar ou usar os objectos, os encaminha imediatamente para a sua prateleira ou para a lavandaria. Tenho saudades de um quarto desarrumado, por mais incrível que pareça.
Com um outro olhar para as prateleiras, lembro-me de livros. Livros! Como eu sentia saudades deles! Desde que a humanidade começou a perder o interesse em ler, estes foram lentamente erradicados do mundo, sendo agora um objecto de arte e uma relíquia, incapazes de ser abertos de novo, com medo de se estragarem. Falar de livros hoje em dia é como falar em… Exacto, não se fala de livros hoje em dia. A humanidade decidiu que não quer mais imaginar, que é uma perda de tempo. Tornou-se sedentária.
Com um toque no braço, sou arrancada a estes pensamentos tristes e nostálgicos. “Ah sim, obrigada Clara”, digo eu pegando no tabuleiro com o pequeno-almoço que a minha robot trazia nas mãos.”De nada senhora”, responde ela com a sua voz automática, “ Quer que lhe traga o almoço às 13:30?”, acrescenta. “Claro, claro”, digo eu já com a cabeça virada para o computador, a escrever freneticamente o meu novo trabalho. Passa-se uma manhã. No fim de almoço, chamo o meu telefone e ligo para a Liliana, hoje é a vez dela de passar por cá. “Olá Lili”, saúdo eu,”A que horas passas por cá hoje?” pergunto. “Oi Adriana! Aí pelas três pode ser? Podíamos ir dar uma volta pela cidade…” responde ela. “Tudo bem”, digo eu, “Então até logo”. “Até logo!”, despede-se ela.
Depois de desligar o telefone, levanto-me da cama, ao fim de 72 horas sem sair dela. Espreguiço-me outra vez e vou em direcção à casa de banho. Mesmo antes de ter dado o meu primeiro passo, já ouço a água a correr na casa de banho, e grito um “Obrigada Clara!” na direcção da cozinha. Quando acabo de calçar os sapatos, a Lili aparece. “Vamos?”, pergunta ela. “Vamos lá”, respondo eu.
Saímos do prédio e começamos a andar, enquanto eu avalio o exterior, inspirando profundamente ao mesmo tempo. Depois de três dias fechada em casa e deitada na cama, um pouco de ar fresco faz sempre bem. Já não me lembrava do barulho dos eléctricos nem a correria das pessoas pelas ruas. À coisa de 7 anos, os carros foram erradicados também do mundo, á semelhança dos livros, por causa de toda a poluição que causavam. Assim, todo o mundo é agora um grande caminho-de-ferro. Conseguimos fazer dele um lugar limpo de novo, depois de uma regra ditada pela União Europeia a obrigar o encerramento de todas as empresas e lugares que estivessem a prejudicar o Planeta Terra, e quem não obedecesse seria obrigado a dar todo o seu dinheiro á UE, claro… Por mais extremista e errada que esta lei possa ter sido, foi uma das poucas que resultou. Conseguiram-se proporcionar novos habitats para espécies desaparecidas ou em vias de extinção, tanto vegetais como animais. Só faltava agora proporcionar novos habitats para os seres humanos, que se estavam a tornar uns grandes monstros. A maioria da população tinha-se tornado obesa, em todos os continentes. Sim, porque com todos estes melhoramentos no ambiente, houve empresas que se começaram a dedicar exclusivamente em ter a Terra limpa, indo buscar trabalhadores a outros continentes, principalmente África. Agora toda a gente é chamada de “trabalhadora”, uma vez que o movimento “Comércio Justo” tinha finalmente levado a melhor, sendo que toda a gente de todo o mundo agora ganhava aquilo que era justo, isto devido ao melhoramento da economia mundial com o encerramento de todas as fábricas poluidoras, por mais incrível que pareça.
De repente, eu e a Lili paramos. Tínhamos chegado ao nosso sítio favorito: o parque da cidade. Todo em tons de verde e azul, o parque estava rodeado de pequenos arbustos e dividido em 5 alas circulares. Cada ala tinha uma espécie de flor diferente, vindas de vários cantos do mundo. Com a tecnologia botânica a desenvolver-se, foi possível criar um ambiente propício para cada uma das zonas de vegetação, sem ser preciso estas estarem dentro de estufas.
Sentámo-nos na ala das orquídeas azuis, uma nova espécie criada a partir do cruzamento de orquídeas brancas com violetas. Lá, falamos sobre os nossos três dias fechadas em casa, sobre o progresso do trabalho de cada uma. Enquanto isto, um grupo de trapezistas actuava no meio do jardim, algo muito comum nos dias de hoje. As crianças pulavam e riam com as acrobacias dos artistas de circo, e dei comigo a apensar que talvez a humanidade não estivesse tão condenada quanto eu pensei. Ainda havia esperança que as gerações vindouras se pudessem a vir a interessar no magnífico mundo que era a imaginação e, com esse pensamento positivo em mente, despedi-me da Lili e dirigi-me a casa, onde a Clara me esperava com o jantar.
Após ter comido, preparei-me para ir para a cama. Lavei os dentes, vesti o pijama e deitei-me. “Mais três dias enfiada neste sítio”, pensei sombriamente. A verdade era que uma única tarde na cidade me tinha desgastado imenso. Levantei os lençóis e olhei para o meu corpo. Todo ele era gordura, fruto de todos os dias sedentários passados em casa a trabalhar a olhar para o tecto. Infelizmente tinha-me acostumado a este tipo de vida, sendo que só saía á rua se fosse estritamente necessário ou se alguém me tirasse de casa.
Mesmo antes de adormecer pensei “A modernidade vai-me matar”, caindo logo de seguida num sono profundo sem sonhos nem imaginação.